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domingo, 20 de março de 2011

O Caso Coca-Cola (parte 2)


O processo aberto por Wiley contra a Coca-Cola considerava o produto “adulterado e com anúncio inadequado”. A adulteração, é claro, estaria no uso de cafeína, que “poderia causar danos à saúde”. Baseado em análises químicas, o Químico-Chefe da América também alegava que a Coca-Cola enganava seus consumidores, já que quase não havia traços de coca e “pouco ou talvez nenhuma cola”. Entre os ingredientes, segundo os autos do processo, havia açúcar, água, cafeína, glicerina, suco de lima “e outras matérias flavorizantes.” (evidentemente, a fórmula completa não foi revelada por se tratar de propriedade industrial da Coca-Cola).

A companhia respondeu às acusações de Wiley reiterando que Coca-Cola era uma marca registrada e que a fórmula estava em uso há mais de 20 anos sem qualquer problema. Quanto à adulteração, era mais difícil provar que a cafeína não era totalmente danosa.



“É psicológico”
Na abertura do julgamento, em 13 de março de 1911 — há praticamente um século — um amplo rol de testemunhas foi ouvido por ambos os lados. Fundamentalistas religiosos (sempre eles) testificavam que beber Coca-Cola levava a festas selvagens, a indiscrições sexuais nas escolas de coeducação (na época, moças e rapazes começavam a estudar juntos em alguns colégios americanos e isso também era um assunto polêmico) e até mesmo falavam que a Coca “induzia os rapazes à sofreguidão masturbatória.” Como eles sabiam disso, ninguém dizia. Do lado da Coca, a maioria dos testemunhos era de natureza científica, embora a metodologia das pesquisas apresentadas fosse quase sempre questionável.

Ao perceber que haviam poucas pesquisas sérias sobre os efeitos da cafeína em seres humanos, a Coca-Cola teve a ideia de contratar um psicologista para estudar o assunto. Diversos psicológos eminentes apareceram, mas a Coca escolheu Harry Levi Hollingworth (1880-1956), então professor do Barnard College (parte da Universidade de Columbia). Entretanto ainda havia preconceito na comunidade científica contra trabalhos aplicados. Assim, Hollingworth só aceitou o trabalho sob duas condições: 1) a Coca-Cola não poderia usar a pesquisa em publicidade nem divulgar o nome do pesquisador para obter aprovação do público e 2) Hollingworth deveria ser livre para publicar o estudo independentemente dos resultados. 
Harry L. Hollingworth (1880-1957): ele salvou a Coca-Cola
levando a pesquisa aplicada à Psicologia.

Pesquisa Aplicada
Financiado pela gigante de Atlanta, Hollingworth criou e conduziu (com a ajuda de sua recém-formada esposa, Leta) o primeiro experimento duplo-cego sobre os efeitos da cafeína sobre a saúde. Apesar da limitação do tempo — cerca de três meses — imposta pela data do julgamento, Hollingworth procurou fazer um estudo tão longo e aprofundado quanto possível.

Em um apartamento de seis quartos, alugado em Manhattan especialmente para o estudo, dezesseis indivíduos (10 do sexo masculino e 6 do feminino), entre 19 e 39 anos, foram reunidos. Como voluntários pagos, eles deveriam obedecer uma série de condições, incluindo a abstenção total de álcool ou cafeína durante o experimento. Um médico examinou cuidadosamente os voluntários, que também deveriam manter registros diários sobre seus níveis de alerta, hábitos de sono e saúde em geral.

Na verdade, Hollingworth estava conduzindo três pesquisas de uma só vez. A mais complexa, com duração de quatro semanas, incluía múltiplos testes de cognição, percepção, julgamento, discriminação e atenção. Durante a primeira semana, os indivíduos receberam cápsulas de placebo e foram levantados os dados básicos enquanto eles se adaptavam à rotina da pesquisa. Na semana seguinte, os voluntários foram dividos em quatro grupos: três passaram a receber diferentes doses de cafeína e o quarto grupo foi mantido como controle e continuou recebendo o placebo. Como o estudo era do tipo duplo-cego, nem os pesquisadores que trabalhavam na pesquisa e nem os indivíduos sabiam quem estava em um grupo experimental e quem era do grupo de controle. As doses de cafeína usadas deveriam ser equivalentes àquelas consumidas diariamente por um consumidor típico de Coca-Cola.

Os outros dois estudos conduzidos por Hollingorth e sua esposa examinavam os efeitos da retirada da cafeína (i.e., possíveis sintomas de crises de abstinência) e os efeitos de diferentes doses de cafeína ingeridas com comida. Mesmo depois de dispensar os voluntários às 18h30 de cada dia, Harry e Leta Hollingworth, auxiliados por estudantes de graduação, trabalhavam até tarde da noite processando e revisando milhares de dados e medidas coletados (e todas as planilhas e o processamento de dados eram feitos à mão, já que ainda faltava quase meio século para o surgimento de computadores eletrônicos). Além disso, Harry Hollingworth exigia que todos os dados fossem arquivados em duplicata, em dois locais diferentes — ele temia que tudo fosse destruído por um simples (e talvez criminoso) incêndio.

Caso Encerrado
Quando os resultados foram apresentados no julgamento que se desenrolava em Chatanooga, Tennessee, a pesquisa de Hollingworth destacava-se diante de todos os testemunhos de especialistas apresentados no caso. Em seu testemunho, o professor de lógica e psicologia do Barnard College afirmou que não havia encontrado nenhuma evidência de efeitos negativos da cafeína sobre os sistemas cognitivo e motor. Como o caso Coca-Cola era um evento já bastante midiático, a psicologia aplicada em geral tornou-se publicamente conhecida.  Um repórter do Daily Times de Chatanooga ficou entusiasmado com esse testemunho, considerando-o “de longe o mais interessante e técnico dentre os já apresentados. A acareação falhou em derrubar qualquer de suas deduções.”

Após mais uma semana de deliberações, o julgamento acabou antes de chegar ao júri popular. O juiz Edward T. Sanford, respondendo a um apelo dos advogados da Coca-Cola, declarou inválidas as acusações do governo e deu um veridicto a favor da Coca. O caso foi encerrado por se tratar de uma pequena questão técnica (se a cafeína seria aditivo ou ingrediente da Coca-Cola). Com isso, a questão do possível perigo da cafeína não teve muito efeito na decisão. Após diversas apelações (mesmo nos EUA, o governo sempre recorre para tentar forçar sua posição), o caso foi definitivamente encerrado em 1916. A Corte de Apelações de Cincinnati, Ohio, manteve a decisão da primeira instância. [texto completo da decisão judicial, em inglês]

O Fanático e o Cientista
O caso marcou o fim da carreira pública de Harvey Washington Wiley, que foi forçado a se demitir em 1912. Mas ele não ficou calado, apenas trocou de barco. Ele assumiu a chefia dos recém-inaugurados laboratórios  de Alimentos, Saúde e Higiene da revista feminina Good Housekeeping (isso mesmo, uma revista com laboratórios próprios!). Ele ficou na revista até morrer, em 1930. Frequentemente usava sua posição para fazer propaganda contra refrigerantes cafeinados. Mas ele nunca mais foi levado a sério — nem pelas donas-de-casa para as quais acabou escrevendo.

Após sua vitória judicial, a Coca-Cola fez o que se esperava: lançou uma grande campanha publicitária proclamando sua “vindicação”. Havia até mesmo uma brochura intitulada Truth, Justice and Coca-Cola [Verdade, Justiça e Coca-Cola], que apresentava nomes e depoimentos de diversos especialistas que testemunharam a seu favor. O acordo com Hollingworth foi cumprido: seu nome não apareceu na brochura publicitária. Em 1912, ele publicou os resultados das pesquisas sobre cafeína em uma monografia de 166 páginas (“The Influence of Caffein on Mental and Motor Efficiency” [A Influência da Cafeína sobre a Eficiência Mental e Motora]). O estudo da cafeína por Hollingworth não apenas salvou a Coca-Cola, mas também foi o primeiro estudo comportamental do tipo e tornou-se um clássico citado até hoje.

Um comentário:

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