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domingo, 11 de abril de 2010

A cegueira lúcida de Saramago

Em seu Ensaio sobre a Cegueira (Companhia das Letras, 1995), José Saramago  vai fundo na análise do que está por trás dessas coisas que chamamos de “civilização” e “humanidade”. Cegueira nos mostra o  mundo cruel e violento que não vemos — e, pior, que nos negamos a ver. Essa é apenas uma das múltiplas faces da cegueira que o livro nos mostra.

Apesar do título, Ensaio sobre a Cegueira não é uma obra filosófica, embora também possa ser lida dessa forma. A obra trata das consequências de uma inédita epidemia de cegueira. Mas não é uma cegueira comum, ela é “branca”. Os cegos não ficam no escuro; têm a vista constantemente ofuscada, imersa num “mar leitoso”. Por isso, Ensaio também tem um quê de ficção científica, embora não haja  nenhuma explicação para a cegueira repentina e sem qualquer sinal de lesão. Pelo desenrolar da trama, Sobre a Cegueira é uma distopia sobre a condição humana.

Capa de Ensaio: versão para o cinema é fiel, mas não dispensa leitura
Tudo começa com um homem que cega repentinamente em meio ao trânsito de uma grande cidade que não é identificada. Apesar da correria urbana, há pessoas que acorrem a ajudá-lo. Mas quem o leva para casa é um homem que acabaria roubando-lhe o carro — e que logo que fica “às claras” também. Após perder tempo pensado tratar-se de casos coincidentes e temendo pelo pior, o governo começa a isolar os cegos. Apesar dos esforços das autoridades, a epidemia é implacável e todos acabam ficando cegos.

Todos, menos, misteriosamente, uma mulher, a mulher do médico que atendeu o primeiro cego. É através dela que nós e o primeiro cego, a mulher do primeiro cego, o médico oftalmologista, a rapariga dos óculos escuros, o rapazinho estrábico e o velho da venda ficamos sabendo dos horrores cada vez piores de um mundo habitado por cegos. Nesse mundo — com o perdão do clichê — as máscaras de civilidade e humanidade caem por completo.

APOCALIPSE SOCIAL
Isolados do mundo num lugar desconhecido e dependentes de uma ajuda externa cada vez mais irregular, os cegos confinados num manicômio desativado caem em um estado cada vez mais animalesco e escatológico. Nessas condições é preciso voltar a lutar pela sobrevivência — e às vezes até matar e estuprar. Socialmente falando, é um completo apocalipse, pois até a autoridade imposta pela força perde seu sentido. Reina apenas o medo, a desconfiança mútua entre os grupos, o desespero e, em muitos casos, a indiferença e a inermia completas. E tudo acontece apenas por que não há mais preocupações com as aparências, pois não há olhos para ver.

Como era de se esperar num mundo cada vez mais cego pelo politicamente correto, o livro causou polêmica por apresentar os cegos como pessoas incapazes das ações mais simples como se limpar e se organizar socialmente. Para variar, os críticos talvez não tenham lido o livro. Senão uma dimensão do que seria um mundo cegado repentinamente.

O retrocesso comportamental do mundo de cegos se deve mais a um acúmulo insuportável de tensões psicológicas: convivência forçada com desconhecidos num ambiente que se mostra inadequado, onde se sente de perto a morte e a podridão;  inquietação constante de todos os indivíduos  frente a uma doença desconhecida e assustadora; sentimento de fragilidade e culpa; egoísmo vs. solidariedade (tipo “por que eu?” em vez de “o que podemos fazer?”) e condições de vida cada vez mais precárias.

saramago
José Saramago: único autor de língua portuguesa a ganhar o Nobel de Literatura tem obras longas e complexas
DIFÍCIL, MAS NÃO IMPOSSÍVEL
Ensaio sobre a Cegueira é uma leitura difícil e não só pela temática envolvida;  talvez ainda mais difícil do que o enredo seja a forma de apresentação, pois Saramago não abre mão de seu estilo, caracterizado por frases e parágrafos longos, entremeados de diálogos, divagações e aforismos, tanto dos personagens, anônimos, quanto do autor, separados do texto apenas por vírgulas, numa estrutura de capítulos sem títulos nem números, o que exige muita atenção de leitores acostumados com a limitação dos tweets e mensagens de texto.

Apesar das mais de 300 páginas com texto nesse estilo e em português europeu, o final parece repentino e adiantado, como se o autor tivesse se cansado do livro. Os seis personagens, assim como a cidade onde vivem, não têm nome, o que amplia a universalidade (e também a dificuldade) da obra. Em resumo, José Saramago nos faz fechar os olhos para ver que a linha que separa homem de animal e brutalidade de civilização é mais tênue do que se pensa — ou do que se quer admitir.

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