Kersey em 1957. Aquarela de Jack Merriot. |
Pensando bem, aquele silêncio era mesmo uma coisa muito estranha: os sinos das igrejas pararam de tocar e até os patos se calaram e ficaram quietos no pequeno riacho no começo da rua principal enquanto o trio de cadetes navais se aproximava do vilarejo. Mais tarde, segundo a recordação dos garotos, até o canto outonal de um pássaro de desvaneceu à medida que eles se aproximavam das primeiras casas. Nenhuma folha se movia nas árvores que, aliás, pareciam não ter sombras. Até mesmo o vento parecia ter deixado de existir.
A rua em si estava bem deserta. Isso não seria surpresa numa manhã de domingo de 1957, ainda mais no coração rural da Inglaterra. No entanto, mesmo os mais remotos vilarejos britânicos já mostravam então sinais de modernidade — carros estacionados nas calçadas, linhas telefônicas suspensas ao lado das ruas e antenas espalhadas pelos tetos. Mas não havia nada disso naquela vila. De fato, todas as casas daquela rua pareciam antiquíssimas: eram grosseiras, com estruturas de madeira, e “quase medievais em aparência”, pensava um dos garotos.
A rua em si estava bem deserta. Isso não seria surpresa numa manhã de domingo de 1957, ainda mais no coração rural da Inglaterra. No entanto, mesmo os mais remotos vilarejos britânicos já mostravam então sinais de modernidade — carros estacionados nas calçadas, linhas telefônicas suspensas ao lado das ruas e antenas espalhadas pelos tetos. Mas não havia nada disso naquela vila. De fato, todas as casas daquela rua pareciam antiquíssimas: eram grosseiras, com estruturas de madeira, e “quase medievais em aparência”, pensava um dos garotos.
Um incidente temporal?
Os três jovens, que eram cadetes da Royal Navy, aproximaram-se da construção mais próxima e meteram seus rostos nas janelas encardidas, esforçando-se para ver alguma coisa. O que dava para ver era algum tipo de açougue, mas o interior era ainda mais perturbador. Segundo um dos meninos, em depoimento ao escritor Andrew MacKenzie:
Os três jovens, que eram cadetes da Royal Navy, aproximaram-se da construção mais próxima e meteram seus rostos nas janelas encardidas, esforçando-se para ver alguma coisa. O que dava para ver era algum tipo de açougue, mas o interior era ainda mais perturbador. Segundo um dos meninos, em depoimento ao escritor Andrew MacKenzie:
Não havia mesas ou balcões, apenas duas ou três carcaças interias de boi que haviam sido esfoladas e em alguns lugares já estavam esverdeadas de velhas. Havia uma porta pintada de verde e janelas com diminutos painéis de vidro, uma na frente e uma do lado, com um ar um tanto sujo. Eu me recordo que enquanto olhávamos incrédulos através daquela janela para as carcaças mofadas e emboloradas... o sentimento geral era um de descrença e irrealidade... Quem acreditaria que em 1957 as autoridades sanitárias permitiriam tais condições?
Eles espiaram em outra casa também. Que, também, tinha janelas esverdeadas e gordurosas e que parecia igualmente desabitada. As paredes pareciam ter sido toscamente caiadas, mas os cômodos estavam vazios. Os garotos não conseguiam ver nenhuma mobília ou objeto e pensavam que as salas em si “não seriam de qualidade moderna”. Assustados, os cadetes voltaram as costas de deram no pé para fora da estranha vila. A trilha que seguiram subia por uma pequena colina e eles não olharam para trás até alcançar o topo da pequena elevação. Daí, segundo um dos três se lembrou, “subitamente podíamos ouvir os sinos tocando novamente e vimos fumaça elevando-se das chaminés, embora nenhuma chaminé estivesse fumando quando estávamos no vilarejo... Nós corremos por uma centena de jardas como que para nos sacudir do sentimento de estranhamento.” [MacKenzie, pp. 6-9]
O que aconteceu com esses três rapazes numa manhã de outubro há mais de meio século ainda permanece um tanto misterioso (ou não). Eles participavam de um exercício de leitura de mapa que deveria ser bastante simples. A ideia era fazê-los se orientar através de quatro ou cinco milhas de uma área rural até um ponto determinado. Depois, eles voltariam à base e relatariam o que encontrassem — o que, de acordo com o plano, seria a pitoresca vila de Kersey, no condado de Suffolk. Mas quanto mais pensavam no assunto, mas os cadetes se convenciam de que algo muito estranho havia ocorrido. Anos mais tarde, William Laing, o rapaz escocês que liderava o trio, colocou as coisas nestes termos:
Era uma vila fantasma, por assim dizer. Era quase como se tivéssemos andado para trás no tempo... Eu experimentei uma sensação esmagadora de tristeza e depressão em Kersey, mas também uma sensação de hostilidade de observadores ocultos que dariam frio na espinha de qualquer um... Eu me perguntava que, se nós batessemos em uma porta para fazer uma pergunta, quem a teria respondido? Não suporto ter de pensar nisso.
Laing, que viera de Pertshire, nas Highlands da Escócia, era um estrangeiro para essas bandas do leste da Inglaterra. Assim também eram seus colegas Michael Crowley (de Worcestershire) e Ray Baker (londrino da gema). Esse era o problema. Os três tinham só 15 anos e haviam acabado de se alistar na Royal Navy. Isso os tornava facilmente enganáveis pelos oficiais responsáveis pelo treinamento. Seus superiores, segundo Laing, estavam “um tanto céticos” quando ouviram sobre aquela experiência, mas logo estavam “rindo bastante, concordando que havíamos visto Kersey corretamente.” [MacKenzie, pp. 8-9]
O incidente de Kersey ficou esquecido até meados da década de 1980, quando Laing e Crowley — que agora viviam na Austrália — conversaram por telefone e remoeram a história toda. Laing sempre foi perturbado pelo acontecimento. Crowley, por sua vez, não se lembrava com tantos detalhes quanto o colega, mas pensava que alguma coisa estranha havia mesmo ocorrido e recordava-se do quadro geral de silêncio, ausência de antenas e postes e especialmente do açougue bizarro. Isso foi o bastante para fazer Laing escrever ao autor de um livro que ele havia lido: Andrew MacKenzie, que era um dos líderes da Society for Psychical Research.
Retrocognição?
MacKenzie ficou intrigado com a carta de Laing e reconheceu um possível caso de retrocognição. Observando cuidadosamente os detalhes, ele pensou que os cadetes haviam visto Kersey não como era em 1957, mas como era séculos antes. MacKenzie e Laing trocariam correspondências por dois anos. Pesquisas em bibliotecas locais com auxílio de um historiador levaram MacKenzie a confirmar sua hipótese. Em 1990, o ex-cadete retornou à Inglaterra e visitou novamente o vilarejo, acompanhado do pesquisador.
O que torna esse caso particularmente interessante é que a retrocognição é o mais raro dos supostos fenômenos paranormais. O número de casos relatados não passa de uma mão cheia. Muitos fatores levaram MacKenzie a considerar como genuína a experiência dos garotos: a sinceridade óbvia de Laing e Crowley (Ray Baker foi procurado sobre o assunto, mas disse não se recordar da experiência); os detalhes de suas recordações; e algumas descobertas persuasivas.
O que torna esse caso particularmente interessante é que a retrocognição é o mais raro dos supostos fenômenos paranormais. O número de casos relatados não passa de uma mão cheia. Muitos fatores levaram MacKenzie a considerar como genuína a experiência dos garotos: a sinceridade óbvia de Laing e Crowley (Ray Baker foi procurado sobre o assunto, mas disse não se recordar da experiência); os detalhes de suas recordações; e algumas descobertas persuasivas.
Entre os detalhes que mais impressionaram o investigador foi o fato de que a cada que Laing identificava como o açougue — que era uma residência particular tanto em 1957 quanto em 1990 — datava de cerca de 1350 e realmente havia sido um açougue até por volta de 1790. MacKenzie também se impressionou com uma sugestiva mudança de estação sentida pelos garotos ao entrar no vilarejo — dentro de Kersey, segundo Laing, “estava verdejante... as árvores estavam naquela cor verde magnífica que se encontra na primavera ou no começo do verão”. Intrigante também era a questão da igreja da vila. Laing notou como o grupo não a viu após entrar na vila sob um manto de silêncio. Aliás, ele lembra-se explicitamente de que “não havia sinal de uma igreja. Eu certamente deveria tê-la visto, já que tinha um campo de observação de 360 graus” no topo do morro. Crowley também se recorda de “nada de igreja ou pub.” [MacKenzie pp. 4, 6, 11]
Contradições Históricas
Contradições Históricas
Tudo isso, porém, parece inexplicável. A Igreja de Santa Maria de Kersey data do século XIV e é o principal edifício do distrito, sendo bem visível a qualquer um que passe pela rua principal. No entanto, MacKenzie vê nisso uma evidência da data em que Laing e sua turma “visitou” o local. Segundo ele, a construção da torre do templo foi interrompida por um surto de Peste Negra (1348-9) que matou metade da população de Kersey. Para MacKenzie, os meninos viram o local como estava após a praga, quando a torre da igreja semiconstruída estava escondida em meio às árvores. Mas MacKenzie, contraditório como todo investigador de paranormalidade, também diz que a data mais provável seria por volta de 1420. Isso porque por essa época Kersey começava a enriquecer como comércio de lã [Kerridge p.5], o que permitiria o aparecimento das primeiras janelas de vidro.
No entanto, essa simples contradição de datas joga por terra a hipótese de que os garotos tenham se perdido no tempo. Kersey é exatamente o tipo de lugar que poderia causar confusões em visitantes novatos e estrangeiros. Quanto à falta de postes e antenas, há uma explicação bastante racional para isso. No começo dos anos 1950 a Suffolk Preservation Society lutou pela preservação da paisagem local [Electrical Review p.414; Electrical Times p.300]. O resultado dos protestos a favor da preservação histórica de Kersey podem ser encontrados em relatórios do Parlamento Britânico da época, que falam de “negociações que resultaram na transferência das linhas aéreas para o fundo das casas de cada lado da rua ou o enterro do cabo no subsolo no ponto onde a rua precisa ser cruzada.” [Command Papers p.96] Ou seja, havia sim linhas elétricas. Elas apenas estavam escondidas por motivos turísticos.
E quanto aos outros detalhes? Janelas de vidro, mesmo que toscas, eram bastante caras e portanto raras nos séculos XIV e XV [Cantor p.139]. Mesmo que a Kersey supostamente visitada fosse rica, porque suas casas estariam abandonadas e sem móveis? Se o local houvesse sido repentinamente abandonado por causa de uma praga, ninguém teria tempo de levar sua mobília.
O açougue bizarro
No entanto, essa simples contradição de datas joga por terra a hipótese de que os garotos tenham se perdido no tempo. Kersey é exatamente o tipo de lugar que poderia causar confusões em visitantes novatos e estrangeiros. Quanto à falta de postes e antenas, há uma explicação bastante racional para isso. No começo dos anos 1950 a Suffolk Preservation Society lutou pela preservação da paisagem local [Electrical Review p.414; Electrical Times p.300]. O resultado dos protestos a favor da preservação histórica de Kersey podem ser encontrados em relatórios do Parlamento Britânico da época, que falam de “negociações que resultaram na transferência das linhas aéreas para o fundo das casas de cada lado da rua ou o enterro do cabo no subsolo no ponto onde a rua precisa ser cruzada.” [Command Papers p.96] Ou seja, havia sim linhas elétricas. Elas apenas estavam escondidas por motivos turísticos.
E quanto aos outros detalhes? Janelas de vidro, mesmo que toscas, eram bastante caras e portanto raras nos séculos XIV e XV [Cantor p.139]. Mesmo que a Kersey supostamente visitada fosse rica, porque suas casas estariam abandonadas e sem móveis? Se o local houvesse sido repentinamente abandonado por causa de uma praga, ninguém teria tempo de levar sua mobília.
O açougue bizarro
Quanto ao açougue, esse é um ponto crucial e demonstra a superficialidade das pesquisas históricas de MacKenzie. A questão é: um vilarejo medieval teria um açougue? Isso não quer dizer que tais estabelecimentos não existissem. Mas eles normalmente ficavam em cidades maiores, onde havia mais demanda. Isso porque a carne, nessa época, era um alimento bem caro. A maioria dos camponeses (e vilões) tinha uma dieta quase exclusivamente vegetariana. Quando se abatia um animal numa vila, o consumo deveria ser imediato, já que não havia muitos métodos de armazenar carne. [Mortimer pp.10-13, 93-4]
O consumo de carne pode até ter aumentado bastante no século XIV (passando de “um décimo ou menos do orçamento alimentar para um quarto ou um terço do total”), mas há evidências de que tal consumo era ocasional: em Norfolk, não muito longe de Suffolk, apenas três cabeças de gado foram abatidas em um ano por volta daquela época. [Dyer pp.85-6] Portanto, parece absurdo supor que um lugar tão pequeno quanto Kersey tivesse não apenas um açougue, mas um açougue com duas ou talvez três carcaças inteiras por volta de 1420. Nessa época Kersey já tinha uma feira semanal onde seria muito mais fácil encontrar carne fresca em pequenas quantidades.
Confusão mental
Confusão mental
Portanto, tudo parece indicar que os cadetes tiveram sim uma experiência excepcional — mas uma experiência puramente psicológica, a derrealização. A derrealização é uma condição psicológica na qual o mundo real subitamente aparenta ser irreal. A favor dessa hipótese há os elementos-chave do incidente: o silêncio, a ausência de vida, as “árvores sem sombra” relatados pelos garotos são comuns em casos de derrealização. As causas podem ser diversas, mas nesse caso tudo não passaria de uma forte impressão de irrealidade causada talvez pelo estresse a que os cadetes haviam sido submetidos durante seu exercício de localização. Assustados por estarem em um local desconhecido no espaço, ele teriam tido a impressão de estarem perdidos no tempo — o que só foi reforçado pela quietude de uma manhã de domingo em um vilarejo pacato do interior da Inglaterra.
Referências
- Andrew Mackenzie. Adventures in Time. London: Athlone Press, 1997
- Eric Kerridge. Textile Manufactures in Early Modern England. Manchester: MUP, 1988
- Electrical Review vol. 145 (1949); Electrical Times vol.116 (1949)
- Command papers. Great Britain: Parliament: House of Commons. London: HMSO, 1951. Vol. XX
- Leonard Cantor. The Changing English Countryside, 1400-1700. London: RKP, 1987
- Ian Mortimer. The Time Traveller’s Guide to Medieval England. London: Vintage, 2009
- Christopher Dyer. Everyday Life in Medieval England. London: Vantage, 2000
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